Repensando Marx: Uma Defesa das Ideias Reformistas de Eduard Bernstein para a Transformação Social
"Karl Marx and Social Reform" (ou "Karl Marx e a Reforma Social") é uma série de artigos escritos por Eduard Bernstein e publicados entre 1897 e 1898 na revista socialista alemã Die Neue Zeit (O Novo Tempo). É de notar que a origem destes, provavelmente, virá de um discurso seu à Sociedade Fabiana, em janeiro de 1897. Este discurso forneceu uma refutação ponto a ponto da vulgarização de Marx propagada por Liebknecht, Hyndman e Bax; Bernstein também atacou Shaw e Bertrand Russell por aceitarem de forma tão acrítica essa falsa interpretação como um retrato preciso do que Marx realmente tinha ensinado. Presumivelmente, na época, Bernstein estava satisfeito com sua palestra a defender o marxismo contra esta distorção. Esta obra é então notável por marcar um ponto importante no desenvolvimento do pensamento socialista em geral, pois marca o início das ideias reformistas de Bernstein, que questionaram aspetos das teorias marxistas tradicionais. [1]
Nos artigos, Bernstein abordou a relação entre o pensamento de Karl Marx e as perspetivas de reforma social dentro do contexto do capitalismo do final do século XIX. Ele argumentou que algumas das previsões feitas por Marx, especialmente a inevitabilidade do colapso do capitalismo e a subsequente revolução proletária, não estavam a ocorrer conforme inicialmente previsto. Bernstein alegou que o sistema capitalista estava a passar por mudanças evolutivas que não necessariamente levariam a uma crise terminal. Isto não quer dizer que discordava da conceção materialista da história afirmação feita no Manifesto Comunista (1848) sobre a transformação da sociedade feudal numa sociedade capitalista e depois numa sociedade socialista está correta –, apenas que Marx e Engels podem ter subestimado a duração desta transformação e talvez estivessem errados sobre os meios políticos exatos que servirão como veículo para esta transformação social. No entanto, a conceção materialista da história nunca foi declarada como completamente inválida por Bernstein. Citando parte do seu livro, Socialismo Evolucionista:
"A teoria que o Manifesto Comunista apresenta sobre a evolução da sociedade moderna estava correta na medida em que caracterizava as tendências gerais dessa evolução. Mas estava errada em várias deduções especiais, sobretudo na estimativa do tempo que a evolução levaria." [2]
Ele continua, escrevendo:
"Claro que não se pode afirmar que Marx e Engels tenham alguma vez negligenciado o facto de que os factores não económicos exercem influência no curso da história. Inúmeras passagens das suas obras iniciais podem ser citadas contra tais suposições. Mas estamos a lidar aqui com uma questão de proporção — não se os factores ideológicos foram reconhecidos, mas que medida de influência, que significado para a história lhes foi atribuído, e neste respeito não se pode negar que Marx e Engels originalmente atribuíram aos factores não económicos uma influência muito menor na evolução da sociedade, um poder muito menor de modificar através da sua ação as condições de produção do que nos seus escritos posteriores." [3]
Bernstein não afirmou que a teoria materialista da história estava errada, até porque estava a defender Marx e Engels da acusação ou da noção de que eram deterministas económicos rígidos. Bernstein também estava a criticar alguns dos que chama de "marxistas vulgares" dessa época e as suas simplificações dos processos históricos inteiramente por razões políticas. Bernstein afirmava que as teorias marxistas eram sempre relativas e nunca absolutas, e, portanto, não há dúvida se a teoria de história deles está absolutamente certa ou errada. Citando até o próprio Marx num discurso de 1850:
"A minoria põe no lugar do crítico uma concepção dogmática. Para eles, não são as condições reais existentes a força motriz da revolução, mas mera vontade. Enquanto dizemos aos trabalhadores, vocês devem passar por 15, 20, 50 anos de guerras e lutas civis, não apenas para mudar as condições, mas para se alterarem e se tornarem capazes de supremacia política, vocês, ao contrário, declaram: 'Devemos imediatamente capturar o poder, ou podemos ir e nos deitar para dormir'. Enquanto explicamos, especialmente aos operários alemães, quão subdesenvolvido é o proletariado na Alemanha, você lisonjeia da maneira mais grosseira o sentimento nacional e o preconceito seccional dos artesãos alemães — um processo que, na verdade, é mais popular. Assim como os democratas fizeram da palavra povo, vocês fizeram da palavra proletariado um fetiche. Assim como os democratas, vocês substituem a frase revolucionária pela evolução revolucionária." [4]
Bernstein estava a argumentar que Marx e Engels talvez calcularam mal a extensão da aplicabilidade das suas teorias, mas em nenhum momento diz que essas ideias estão erradas ou inaplicáveis. Bernstein defende novamente Friedrich Engels e a conceção materialista da história da acusação de serem dogmáticos e de ignorar o lado ideológico:
"Mas, em qualquer caso, a multiplicidade dos fatores permanece, e não é de todo fácil descobrir as relações que existem entre eles de forma tão exata que possa ser determinado com certeza onde, em casos dados, se deve procurar o motivo mais forte. As causas puramente económicas criam, em primeiro lugar, apenas uma disposição para a receção de certas ideias, mas como estas depois surgem e se espalham e que forma tomam, dependem da cooperação de uma série de influências. Mais dano do que bem é feito ao materialismo histórico se, no início, se rejeita como ecleticismo uma acentuação das influências que não são do tipo puramente económico, e uma consideração de outros fatores económicos que não sejam a técnica de produção e o seu desenvolvimento previsto." [5]
Bernstein escreveu, finalmente, que a conceção materialista da história não deve implicar a inevitabilidade dos eventos baseados em mudanças no modo de produção, apenas que é uma boa regra geral. O marxismo não é, ou não deve ser, um dogma histórico para criar profecias puras. É uma ferramenta útil para analisar o mundo ou encontrar inspiração para políticas. Esta ideia está claramente presente no seu artigo:
"Mas em cada período da história, podemos distinguir facilmente um modo de produção e de troca predominante, e uma conceção correspondente da vida, dos deveres e direitos, que também prevalecem e determinam a natureza das instituições sociais e políticas do período. Isto é bastante óbvio nas fases iniciais da vida social. Mas quanto mais complexa a sociedade se torna, mais os motivos objetivos da evolução social recuarão para o fundo, e os motivos subjetivos parecerão determinar o seu curso. Mas, poderoso como o fator subjetivo na história, ele ainda está sob o controlo do funcionamento das bases económicas da vida social." [6]
O que Bernstein está a dizer aqui é que as fundações morais e ideológicas — subjetivas — para a história tornam-se mais proeminentes à medida que as fundações materiais — objetivas — da história já as colocaram em ação. Ele rejeita expressamente a noção de que a teoria da conceção materialista seja fatalista.
"As pessoas têm estigmatizado a conceção materialista da história como fatalismo histórico. Mas, até agora, não conseguiram apontar um país onde a produção em linhas comerciais e a lei e a moral feudais coexistem em pleno vigor (…)" [6]
"O sonho, alimentado por homens como Bakunin, de poupar aos russos o período da economia burguesa, está terminado para sempre; nem o todo-poderoso Czar — para falar com Marx — o pode remover por decreto, nem o revolucionário ardente pode fazer a Rússia ultrapassar as suas fases de evolução com o auxílio de dinamite (…) Em resumo, há o que nós alemães chamamos de Gesetzmässigkeit — uma ordem de lei — na evolução social." [7]
Nova lei da história?
Apesar das interligações entre o pensamento de Bernstein e as ideias de Marx e Engels, é crucial destacar que esta interpretação da conceção materialista da história se revela surpreendentemente atual nos nossos tempos. À volta do mundo, movimentos originários da classe trabalhadora emergiram como resposta ao sistema capitalista, estes movimentos procuraram uma maior igualdade e justiça social através das teorias e análises apresentadas tanto por Marx como também por Bernstein.
Deste modo, em diversos países, surgiram movimentos laborais que advogavam o socialismo. Estes movimentos pressionaram, posteriormente, por mudanças tanto a nível político como económico, tais como o sufrágio universal, a implementação do dia de trabalho de 8 horas, a criação dos alicerces do que viria a ser o Estado Social, a adoção de regimes de tributação progressiva, a introdução de leis para a democratização da indústria e do ambiente laboral, e até mesmo a estatização de setores-chave da produção.
Foram também estes movimentos que impulsionaram a criação das sociedade mais igualitárias e democráticas que o Mundo já viu. Como é o caso da Suécia e o resto dos países nórdicos. Mas não fiquemos por aí. Também é o caso de países como o Uruguai, que com um movimento socialista liderado por pessoas como Pepe Mujica lutaram contra uma ditadura no seu país e, posteriormente, concorrendo a eleições democratas reemergiram tanto o seu povo como o seu país com a criação do seu próprio Estado Social.
Somente em poucos países, o socialismo avançou através de revoluções, sendo que isto ocorreu principalmente em nações menos desenvolvidas industrialmente, como a Rússia, a China e o Vietname. Na maioria das nações, foram as forças materiais (evolutivas) da história que impulsionaram as transformações reformistas mencionadas. O facto de as revoluções socialistas não terem tido sucesso em nações já bem desenvolvidas após a década de 1920 não contradiz a conceção materialista da história. Esta contradição só seria viável se esta teoria da história fosse confundida com a previsão de que a transformação socialista necessariamente exigiria uma revolução como evento desencadeador. E que, ironicamente, foi exatamente este caminho ideológico, o do marxismo-leninismo, que levou a provar que o socialismo imposto através da revolução não só não resulta, como degenera para um estado autoritário capitalista que, nolongo prazo, fetichiza uma estética socialista e de esquerda.
A conceção do socialismo reformista e da social-democracia
Quando Karl Marx e Friedrich Engels originalmente formularam as suas teorias sociais, referiam-se a uma época em que a classe trabalhadora estava efetivamente, e não apenas de forma figurada ou indireta, excluída do controlo do Estado. Quando Marx descreveu o Estado como:
"O aparelho do Estado moderno não é mais do que um comité para gerir os interesses coletivos da burguesia."
Naquela altura, a maioria dos países limitava o direito de voto a uma pequena percentagem da população, frequentemente restringindo-o aos proprietários. Em alguns casos, existiam autocracias ou, simplesmente, ausência de democracia, como na Rússia. Na visão de Marx e Engels, esta exclusão desempenhava um papel crucial na supremacia da classe burguesa. Eles interpretavam-na como uma característica inerente ao sistema político, intrinsecamente ligada ao capitalismo. Daí decorria a sua crença de que apenas através de meios revolucionários seria possível romper com esta dominação de classe. Muitas das críticas dirigidas à "democracia burguesa", tal como a entendiam Marx e Engels, derivam destas caraterísticas específicas.
O termo "democracia burguesa", no sentido que Marx e Engels possivelmente tinham em mente, era bastante literal. Não se tratava apenas de uma preocupação abstrata de como o Estado democrático poderia servir os interesses do capital, mas sim a percepção de que o capital estava de facto a governar o Estado. Socialistas posteriores que invocaram esta linha de pensamento para justificar várias posturas, desde o anti-parlamentarismo até à revolução e até ao governo autoritário de um único partido — como fez Lenin ao dissolver a assembleia constituinte pós-Revolução de Outubro -, estavam a retirar este raciocínio do seu contexto adequado.
No entanto, à medida que as restrições diretas foram gradualmente eliminadas no final do século XIX e no início do século seguinte, a burguesia perdeu o seu monopólio sobre o poder político. Embora a ameaça à democracia política persistisse, esta agora manifestava-se através da concentração do poder nas mãos de poucos proprietários de indústrias, devido à propriedade privada dos meios de produção. Bernstein argumentava que esta evolução em direção a uma governação mais inclusiva representava, fundamentalmente, um desafio à burguesia. Isto concedia às pessoas comuns, incluindo a classe trabalhadora e aqueles marginalizados pela sociedade, a capacidade de procurar uma ordem económica mais equitativa e de contestar as classes detentoras dos meios de produção:
"Em todos os países avançados, estamos a assistir a uma gradual cedência dos privilégios da burguesia capitalista perante as instituições democráticas. Sob esta influência e impulsionados pelo fortalecimento contínuo do movimento das classes trabalhadoras, emerge uma reação social contra as tendências exploratórias do capital. Embora de forma ainda tímida e hesitante, esta contramedida existe e continua a abranger cada vez mais setores da vida económica. A legislação laboral, a democratização do governo local e a expansão da sua esfera de atuação, a libertação dos sindicatos e cooperativas comerciais das restrições legais, a consideração das condições de trabalho padrão como uma responsabilidade das autoridades públicas — tudo isso caracteriza esta fase da evolução." [8]
Bernstein estava parcialmente certo ao advogar que os socialistas empregassem métodos parlamentares. Isso deve-se ao facto de o pior da dominação burguesa ter ficado para trás. No entanto, este princípio não é absoluto, e a democracia política não será completa enquanto as divisões económicas e sociais persistirem, sendo este um argumento a favor do socialismo e da social-democracia.
Com o tempo, Marx e Engels também parecem ter ajustado as suas perspetivas à medida que as circunstâncias sociais progrediam e se tornava evidente que a burguesia não detinha um monopólio total sobre o Estado. A ideia de que Marx e Engels eram intransigentes revolucionários românticos, especialmente nas fases finais das suas vidas, é imprecisa. Em muitos aspetos, Bernstein inspirou-se nestes novos desenvolvimentos. Karl Marx afirmou em 1872 que o socialismo poderia ser alcançado de forma pacífica em países com regimes políticos mais liberais. A ação revolucionária permanecia necessária em estados autoritários com democracia limitada, mas não era a regra:
"O trabalhador deve um dia tomar o poder político para estabelecer a nova organização do trabalho. Ele deve mudar a antiga política, mantida pelas velhas instituições, a menos que deseje, como os cristãos do passado que desprezavam e negligenciavam tais coisas, renunciar às coisas deste mundo. Não obstante, não afirmamos que a forma de atingir esse objetivo seja a mesma em todos os lugares. Reconhecemos que as instituições, costumes e hábitos de diferentes países devem ser considerados, e não negamos que existem países como Inglaterra e América, e, se eu compreendesse melhor as suas circunstâncias, talvez pudesse até incluir a Holanda, onde o trabalhador pode alcançar o seu objetivo por meios pacíficos. No entanto, isso não se aplica universalmente." [9]
O debate político e teórico que ocorreu no final do século XIX trouxe benefícios para o movimento socialista e, por extensão, para o marxismo. O trabalho de Bernstein não consistiu, como ele próprio afirmou, em rejeitar por completo as teorias de Marx e Engels, mas sim em reavaliar as suas conclusões à luz das mudanças políticas e económicas que se verificaram. A teoria marxista continuou a ser um pilar do pensamento socialista, mas começou a ser complementada por outras ideias e interpretações que reconheciam a necessidade de se adaptar às realidades do século XX.
As ideias de Bernstein sobre reformismo e evolução pacífica não representaram uma rejeição completa das ideias revolucionárias de Marx e Engels, mas antes uma reavaliação das estratégias mais apropriadas para atingir os objetivos socialistas à luz das mudanças políticas e sociais que ocorreram desde o século XIX. O debate entre revisionistas e ortodoxos contribuiu para a diversidade de abordagens no seio do movimento socialista e ajudou a moldar o pensamento socialista moderno. Argumentou então que o socialismo poderia ser alcançado através de reformas democráticas, melhorias incrementais nas condições de trabalho e redistribuição de riqueza, em vez de uma revolução violenta. Ele enfatizou a importância da participação política e da utilização das instituições democráticas para alcançar os objetivos socialistas.
Conclusão
Esta série de artigos gerou um intenso debate no seio do movimento socialista. Muitos marxistas ortodoxos criticaram Bernstein por trair os princípios revolucionários do marxismo. No entanto, as suas ideias também encontraram apoio entre aqueles que acreditavam que adaptar as teorias socialistas à realidade em evolução era essencial para alcançar mudanças significativas. Deste modo, o pensamento de Eduard Bernstein não eliminou o marxismo, mas sim desafiou-o a se adaptar às mudanças na sociedade e na política. O debate entre reformistas e revolucionários continua a ser uma parte importante do pensamento político e social, à medida que as pessoas procuram maneiras eficazes de promover a justiça social e a igualdade.
Em resumo, "Karl Marx e a Reforma Social" de Eduard Bernstein aborda a reavaliação das teorias marxistas à luz das mudanças sociais e económicas do final do século XIX. Bernstein argumentou que o movimento socialista deveria procurar reformas graduais e democráticas dentro do sistema capitalista, em vez de depender unicamente de uma revolução violenta, inaugurando o que ficou conhecido como socialista reformista. As suas ideias tiveram um impacto duradouro na evolução do pensamento socialista e contribuíram para a formação ideológica dos partidos social-democratas, trabalhistas e socialistas democráticos.
Bibliografia
Rogers, H. Kendall. "EDUARD BERNSTEIN SPEAKS TO THE FABIANS: A TURNING-POINT IN SOCIAL DEMOCRATIC THOUGHT?" International Review of Social History 28, no. 3 (1983)
Bernstein, Eduard. "Evolutionary Socialism A Criticism and Affirmation" Rows Collection (1899)
Laidler, Harry W. "History of Socialism An Historical Comparative Study of Socialism, Communism, Utopia" (2010)
Referências
[1] KENDALL, pp.320
[2] BERNSTEIN, pp.3
[3] BERNSTEIN, pp.20
[4] KENDALL, pp.330
[5] BERNSTEIN, pp.21
[6] KENDALL, pp.327
[7] KENDALL, pp.327–328
[8] BERNSTEIN, pp.3
[9] LAIDLER, pp. 156