Pleno Emprego e a social-democracia

O direito ao trabalho é um pilar da social-democracia, que tem como fim acabar com a precariedade laboral e financeira e permitir uma sociedade para a qual todos podem contribuir.
Poucos textos sobre a instabilidade da manutenção de um estado de pleno emprego são tão influentes como o ensaio "Political Aspects of Full Employment", publicado em 1943 por Michal Kalecki.

O pleno emprego é, então, descrito por Kalecki como sendo uma provocação de mudanças sociais e políticas, o que daria um novo impulso à oposição aos capitalistas. Com efeito, em regime de pleno emprego permanente, o despedimento deixa de desempenhar o seu papel como medida disciplinar. A posição social do patrão seria prejudicada, e a autoconfiança e a consciência de classe da classe trabalhadora cresceria. Greves por aumentos salariais e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão política para haver real mudança na vida laboral. Este estado de pleno emprego é então caracterizado pela falta de escassez de trabalho e, como tal, de desemprego.
Apesar de hoje ser reconhecido como uma das principais influências da escola Pós-Keynesiana, o economista polaco foi contemporâneo de Keynes e desenvolveu teorias com conclusões muito semelhantes no que toca ao funcionamento de economias de mercado, ainda que com visões radicalmente diferentes no que toca à Economia Política.
Tendo escrito num momento em que as políticas macroeconómicas keynesianas começavam a conquistar a hegemonia que vigorou nos '30 anos gloriosos', identifica, nesse texto, três razões pelas quais os "líderes industriais" se tendem a opor a políticas que favorecem situações de pleno emprego:
i) intervenção do Estado no problema do emprego em si:
Sob um Estado de laissez-faire, o nível de emprego depende do chamado "estado de confiança" dos empresários no futuro. Se este se deteriora, o investimento privado desce, o que faz descer o nível de produção e, consequentemente,o emprego. Se este dispara, o investimento tende a aumentar, reduzindo o desemprego. A doutrina das "contas equilibradas" e da "contenção fiscal" acaba por ter como motivação, não uma preocupação com a sustentabilidade das finanças públicas, mas sim delegar mais influência sob os ciclos económicos e sobre o bem-estar social nas classes detentoras de capital.
Défices orçamentais, que podem ser usados pelo Estado como ferramenta para reduzir o desemprego e incentivar o consumo, são olhados com desconfiança e rotulados como "perigosos" e "irresponsáveis" pela classe que perde o controlo (direto ou indireto) sobre o estado da economia.
ii) oposição aos destinos da despesa (investimento público e subsídios ao consumo):
Quando um aumento da despesa pública é inevitável para contornar uma crise, o capital pede que esta esteja circunscrita apenas a áreas que não entram em concorrência direta com o setor privado (escolas, estradas, hospitais, etc.). Mas mais do que investimento público, são os subsídios ao consumo (aumentos de pensões, subsídios de desemprego estendido, RBI, RSI, ou outro tipo de transferências em dinheiro), o tipo de despesa a que a classe empresarial se opõe, já que esta tem o potencial de retirar pessoas da dependência direta da venda da sua força de trabalho. Segundo Kalecki,
Os fundamentos da ética capitalista requerem que 'ganhes o teu pão com o teu suor' — a não ser que tenhas propriedade.
Por debaixo da falsa preocupação moral com alguém ter que 'merecer' qualquer rendimento obtido por via do esforço, está a óbvia assimetria de poder entre empregador e empregado. Quando o nível de vida de alguém, seja por assistência do Estado Social ou não, não está completamente dependente do mercado de trabalho — Esping-Andersen chama a isto "desmercantilização do trabalho" -, a autoridade da figura do patrão na sociedade enfraquece e a do trabalhador ganha força.
iii) oposição às mudanças políticas e sociais que resultam da manutenção de um estado prolongado de pleno emprego:
Mesmo quando o estado de pleno emprego é atingido, este dá origem a mudanças suscetíveis de causar oposição por parte dos empresários. Quando existem mais vagas por preencher do que trabalhadores disponíveis, e as empresas vêem-se obrigadas a competir entre si por mão de obra, a posição social do patrão é automaticamente debilitada. Assim, os trabalhadores mais organizados, e com maior poder de negociação, conseguem mais rapidamente ver as suas exigências cumpridas e os seus direitos respeitados. Pedidos de aumentos salariais são mais facilmente correspondidos e a percentagem do fator trabalho no rendimento nacional aumenta.
Apesar de toda a evidência que suporta que uma economia cresce de maneira mais acelerada e sustentada através de crescimentos de salários e emprego, do que quando a maioria dos rendimentos é apropriada por uma minoria rica, e que por isso esse cenário deveria ser em teoria esmagadoramente preferível, evitar a tensão política que advém de uma situação prolongada de pleno emprego é uma preocupação muito mais urgente para o fator capital. Citando do texto:
É verdade que os lucros seriam maiores sob um regime de pleno emprego do que num de laissez-faire. […]. Mas 'disciplina nas fábricas' e 'estabilidade política' são mais apreciadas que lucros pelos líderes empresariais. O seu instinto de classe diz-lhes que o pleno emprego duradouro é doentio do seu ponto de vista, e que o desemprego é uma parte integral do sistema capitalista 'normal'.
Kalecki também analisa qual seria o resultado prático da oposição a uma política de pleno emprego noutros dois pontos:
i) oposição por princípio aos gastos do governo com base num déficit orçamentário e que esse gasto seja direcionado para o investimento público ou para subsidiar o consumo em massa:
Concorda-se com a necessidade de que algo deve ser feito numa eventual crise; em primeiro lugar, sobre o que deve ser feito na recessão (ou seja, qual deve ser a direção da intervenção do governo) e, em segundo lugar, que deve ser feito apenas durante a recessão (isto é, meramente para aliviar as recessões em vez de garantir pleno emprego). Nas discussões atuais sobre estes problemas surgem vezes sem conta a conceção de contrariar a queda, estimulando o investimento privado. Isto pode ser feito baixando a taxa de juro, pela redução do imposto sobre o rendimento, ou subsidiando o investimento privado diretamente neste ou outra forma. Que tal esquema deve ser atraente para as empresas não é surpreendente. O empresário continua a ser o meio através do qual a intervenção é conduzida. Se não sentir confiança na situação política, ele não vai ser motivado a investir. E a intervenção não envolve o governo em "brincar com" o investimento público ou "a desperdiçar dinheiro" em subsidiar o consumo. Pode ser demonstrado, no entanto, que o estímulo do investimento privado não fornece um método adequado para prevenir o desemprego em massa. Pois além da fraqueza fundamental de combate ao desemprego por estimular o investimento privado, existe uma dificuldade prática. A reação dos empresários à diminuição do imposto sobre o rendimento e à redução da taxa de juro é incerta. Se o downswing for acentuado, eles podem ter uma visão muito pessimista do futuro, e estas medidas podem, então, por muito tempo ter pouco ou nenhum efeito sobre o investimento, e, portanto, sobre o nível de produção e emprego.
ii) oposição à manutenção do pleno emprego e não apenas à prevenção de recessões profundas e prolongadas:
Mesmo aqueles que defendem o estímulo ao investimento privado para contrariar a crise, frequentemente não se baseiam exclusivamente nele, mas consideram que deveria estar associado ao investimento público. Atualmente, parece que os líderes empresariais tendem a aceitar um investimento público "tapa-buracos", financiado por empréstimos como meio de atenuar as quedas. Eles parecem, no entanto, ainda opor-se de forma consistente à criação de empregos através de mecanismos como a subsidiação do consumo e à manutenção do pleno emprego. Esse estado de coisas talvez seja sintomático do regime económico das democracias capitalistas. Na recessão, sob a pressão das massas, ou mesmo sem ela, o investimento público financiado por empréstimos será feito para evitar o desemprego em larga escala. Mas se forem feitas tentativas de aplicar esse método para manter o alto nível de emprego alcançado no boom subsequente, é provável que haja forte oposição dos líderes empresariais. Como já foi argumentado, o pleno emprego duradouro não é nada do seu agrado. Os operários "ficariam fora de controle" e os "capitães da indústria" estariam ansiosos para "ensinar-lhes uma lição''. Ou como Chris Dillow põe no seu livro Unemployment, Well-Being and Capitalism:
O capitalismo precisa que os desempregados procurem trabalho — para serem uma oferta efetiva de mão de obra. Isso exige que eles sejam "incentivados" a procurar emprego por meio de parcos benefícios de desemprego e por serem estigmatizados. Por outras palavras, os desempregados devem ser feitos infelizes.
Além disso, o aumento de preços na fase ascendente é uma desvantagem para os pequenos e grandes empresários, que os torna cansados do boom. Nesta situação, é provável que se forme uma aliança entre os grandes negócios e os interesses rentistas. A pressão de todas essas forças e, em particular, das grandes empresas — via de lobbies ou subornos — provavelmente induziria o governo a retornar à redução do déficit orçamentário. Seguir-se-ia uma crise na qual a política de gastos do governo voltaria a se impor. Para exemplificar, Kalecki dá este caso:
Algo muito semelhante aconteceu nos EUA em 1937–38. A quebra do boom na segunda metade de 1937 deveu-se, na verdade, à redução drástica do déficit orçamentário. Por outro lado, na crise aguda que se seguiu o governo voltou prontamente a uma política de gastos.
O regime do ciclo económico político seria uma restauração artificial da posição existente no capitalismo do século XIX. O pleno emprego seria alcançado apenas no topo do boom, mas as quedas seriam relativamente suaves e de curta duração.
Mas qual é a relação entre o texto e a social-democracia?
De seguida, Kalecki pergunta se deve um progressista ficar contente com um regime de ciclo económico e político conforme descrito anteriormente. A resposta é não. Este deveria opor-se por dois motivos: por não garantir o pleno emprego duradouro e que a intervenção governamental está vinculada ao investimento público e não contempla o subsídio ao consumo. O que as massas pedem agora não é a mitigação das quedas, mas a sua total abolição. A utilização mais plena de recursos também não deve ser aplicada a investimentos públicos indesejados apenas para gerar trabalho. O programa de gastos do governo deve ser dedicado ao investimento público apenas na medida em que tal investimento é realmente necessário. O restante dos gastos do governo necessários para manter o pleno emprego deveria ser usado para subsidiar o consumo, por meio de bolsas de família, pensões para idosos, redução de impostos indiretos e subsídios às necessidades. Os opositores de tais gastos dizem que o governo não terá resultados para mostrar. A resposta é que a contrapartida desse gasto será o padrão de vida mais elevado das massas. E não é este o propósito de toda atividade económica? A alternativa seria o chamado "Political Business Cycle", onde as pressões de reivindicações salariais e de movimentos trabalhistas organizados são geridos pelos governos através de crises artificiais induzidas, e onde o pleno emprego é apenas atingido temporariamente no pico do boom de cada ciclo. De forma talvez otimista, dizia que se o capitalismo se conseguisse ajustar a uma situação de pleno emprego, seria porque este teria sofrido uma reforma profunda. Se não o conseguisse, estaria a demonstrar uma razão para ser descartado.
E tal como vimos durante a segunda metade do Século XX, o capitalismo não se conseguiu adaptar ao pleno emprego, ou seja, o otimismo de Kalecki não se comprovou. Mesmo na Suécia, que por influência do seu Partido Social-Democrata, conseguiu atingir um dos maiores estados de pleno emprego, não o conseguiu preservar devido às crises económicas recorrentes no capitalismo. Foi a crise criada pela incompatibilidade da coexistência de crescimento económico, igualdade, inflação controlada e pleno emprego sob as regras tradicionais de negociação entre o fator trabalho e capital que fez com que fosse possível colocar em cima da mesa uma proposta que, ao sugerir criar as novas instituições de que Kalecki falava, transcenderia gradualmente a hegemonia do capitalismo liberal. Mas foi também o poder acumulado por uma classe minoritária de detentores de capital que estancou o progresso no sentido da democracia económica e que conseguiu mobilizar com sucesso forças suficientes para preservar o statu quo.
O próprio Esping-Andersen observava, já em 1985, que uma estratégia de longo prazo para a social-democracia assente apenas na defesa do Estado Social universal era insuficiente, uma vez que a solidariedade social está altamente dependente dos ciclos económicos e do nível de investimento do setor privado.
À medida que o Estado Social e as despesas relacionadas com este crescem, os encargos são suportados de forma cada vez mais desproporcional pelas classes com maiores rendimentos, que estando pouco dependentes de políticas de redistribuição para o seu nível de bem-estar, facilmente podem quebrar o compromisso de solidariedade que torna a social-democracia viável em primeiro lugar. Ou seja, para assegurar a estabilidade do sistema e o poder negocial do fator trabalho sobre o fator capital, é necessária a manutenção do pleno emprego e de um ritmo sustentado de crescimento económico ao longo do tempo, o que não é possível quando se está sujeito aos períodos cíclicos de expansão e recessão típicos de uma economia capitalista — e é nestes segundos que os trabalhadores e os movimentos operários se encontram especialmente enfraquecidos e vulneráveis.
Esping-Andersen acaba por concordar com Kalecki (e com Keynes) quando o segundo afirma que "aquilo que as massas pedem hoje não é a mitigação das crises mas a sua total abolição". O primeiro coloca a questão noutros termos:
De forma geral, a social-democracia deve, no longo prazo, coletivizar e democratizar o poder económico. Quando a taxa de crescimento da economia diminui, […] o futuro da social-democracia dependerá da sua capacidade de garantir que são mantidos níveis adequados de investimento na economia, quer os investidores privados estejam dispostos a aceitar a responsabilidade ou não. Não é certo que a social-democracia seja capaz de evitar, mais tarde ou mais cedo, socializar a função de investimento.
Conclusão
Pode-se resumir o pleno emprego ao seguinte: qualquer um que queira um trabalho consegue arranjar trabalho "facilmente" e quem quiser sair do seu emprego também o deve conseguir fazer tão desembaraçadamente. Isto é uma elevação do poder do trabalho contra os interesses do capital. Elevando o poder do trabalho, o pleno emprego cria um poder de negociação suficientemente maior contra o capital, pois força os capitalistas a competir uns contra os outros pelo fator fundamental da produção: o trabalho. Algumas políticas que devemos defender para alcançar o pleno emprego são: uma estratégia económica de tight labour markets, promulgando leis que fortalecem o poder do trabalho por meio de medidas pró-sindicatos, negociação salarial centralizada (como o Plano Meidner), subsídio de desemprego generoso e outros esquemas de distribuição e, o mais importante, um forte Estado Social para ajudar a descompactar o trabalho. Também devemos olhar para uma política industrial robusta. O caminho para o pleno emprego pode ser prejudicado por cadeias de abastecimento e restrições de capacidade, como tal, a política industrial alivia a tensão gerada por mercados de trabalho apertados; ou como Robert Reich pôs:
A política industrial concentra-se no padrão mais produtivo de investimento e, assim, favorece os segmentos empresariais que prometem ser fortes competidores internacionais, ao mesmo tempo em que ajuda a desenvolver a infraestrutura industrial (rodovia, porto, saneamento) e a mão de obra qualificada necessária para sustentá-los.
Concluindo, como tentei demonstrar com este artigo, a social-democracia e os sociais-democratas, para além de defenderem o Estado Social necessitam complementá-lo com um "estado" de pleno emprego para uma verdadeira desmercantilização do trabalho e das pessoas.

Escrito por António Figueiredo.
Referências
Political Aspects of Full Employment, Michal Kalecki
https://jacobin.com/2018/05/political-aspects-of-full-employment-kalecki-job-guarantee