O perigo da (des)memória

23-04-2024
Cartoon de João Abel Manta
Cartoon de João Abel Manta

No dia 12 de abril de 2024, a míseros 13 dias do dia 25 de abril, cinquentésimo do seu género em liberdade, ouvíamos o deputado André Ventura a anunciar, no plenário da Assembleia da República, que "enchemos a boca para dizer 50 anos do 25 de Abril e em casa já ninguém quer saber disso". A esta declaração seguiu-se uma enumeração de várias carências materiais que assolam diariamente a vida dos cidadãos portugueses, desde os baixos salários ao custo de vida. Esta manobra retórica é insólita — apresenta a memória histórica como algo totalmente fútil, cuja valorização é impugnadora da preocupação política com os problemas com que as pessoas se defrontam no quotidiano, como, por exemplo, serem incapazes de comportar o pagamento de uma casa em Lisboa estando condenadas a receber um salário precário em comparação com a realidade europeia.

Esta artimanha é, de facto, excepcional. Num abrir e fechar de olhos, ou melhor, de boca, a história passa a ser "aquela coisa inútil" que "não põe o pão na mesa". Terei de admitir que a segunda constatação é certeira — creio que uma alimentação à base de volumes de História de Portugal de José Mattoso não será a melhor opção nutritiva — , não obstante terei de declarar indubitavelmente que a memória histórica não é, nem nunca será, inútil. É a história que nos permite construir uma identidade coletiva, baseada na memória, no passado, e não deve nunca ser desvalorizada. O desmerecimento da libertação de Portugal do jugo ditatorial do Estado Novo constitui também um descabido menosprezo por todas as suas vítimas, pelos milhares de pessoas que lutaram pela liberdade com que hoje nos regozijamos. Sem embargo, esta instrumentalização política da memória não acontece num vácuo. Acontece, sim, no contexto de um discurso populista que pretende captar eleitorado através da sua alienação, procurando ofuscar a memória da sua libertação (e consequente soberania) política e lançando-a numa crise de meia idade, levando a que o seu valor seja quase esquecido.

A memória histórica serve uma comunidade no sentido em que a guia pelo que viveu no passado, consciencializando-a dos perigos e desafios que enfrentou, para que no presente seja capaz de se defender de ameaças que têm ecos nesse passado. A instrumentalização da história e a sua transformação num não-assunto tem como objetivo baixar-lhe a guarda, para que esta, cansada de uma morosa guerra contra a miséria, na figura da sobrecarga laboral e precariedade salarial, deixe entrar pelos portões da cidade o cavalo de Tróia que, finalmente, lhe trará a desejada paz. É o desarmamento de um povo, um perigo real que tem como caminho único a normalização de atores políticos populistas e a sua consequente ascensão ao poder.

A desconsideração pela história não é, contudo, a única fórmula que os agentes que a levam a cabo adotam para a construção do seu projeto populista. O revisionismo histórico é também uma poderosa arma no seu arsenal. Desde a perigosa visão lusotropicalista do colonialismo português à "necessidade" da instauração de uma ditadura militar em 1926 para restabelecer a "ordem", estes atores reacionários procuram criar uma narrativa histórica que sirva unicamente o seu projeto político, usando a (des)memória como fator central na sua legitimação ideológica.

Avizinhando-se as comemorações do cinquentenário do 25 de abril e dos episódios revolucionários que lhe seguiram, ilustrarei este estratagema político seguindo o exemplo das recentes polémicas quanto à comemoração do dia 25 de novembro de 1975. Dia este que, no seu tempo, foi usado como chavão anti-comunista, é agora paulatinamente transformado num marco anti-esquerda, procurando classificar quem recusa a sua celebração como "esquerdista radical" e "antidemocrático".

Esta deturpação histórica baseia-se na culpabilização do PCP pelo golpe fracassado e procura instituir a narrativa de que Abril nada seria sem Novembro, o que é, no mínimo, uma visão infantilizada e pouco precisa da história. É amplamente reconhecido na comunidade historiográfica que foi o golpe de 25 de abril de 1974 que abriu caminho à democratização de Portugal, não obstante dos episódios de tentativas de golpes e contra-golpes que se lhe seguiram. É então, nesta ótica, consensual que o contra-golpe de 25 de novembro de 1975, embora merecedor da sua importância, não foi o garante único de Abril. Desde o Documento dos Nove de Melo Antunes e as repercussões que teve dentro do MFA e, sobretudo, dos seus ecos nas decisões de Tancos, ao não-envolvimento do PCP no golpe novembrista e a contenção pactuada da revolução que concretizou, está claro que as ânsias revolucionárias dos paraquedistas não reuniam as condições necessárias para a sua sobrevivência política.

No entanto, não nos enganemos — o 25 de novembro de 1975, tal como muitas outras datas no decorrer do período entre 1974 e 1975, assume uma grande importância na história recente portuguesa, que deve invariavelmente ser lembrada como mais um triunfo do campo democrático. O perigo surge na sua equiparação ou até, em certos casos, superiorização, ao 25 de abril de 1974 — alvorada na qual se pôs fim à polícia política e a censura, em que cessou prisão arbitrária e a tortura; madrugada que derrubou de vez o fascismo português. Este revisionismo histórico com propósitos claramente ideológicos serve apenas um crescente clima polarizador da sociedade, criando, progressivamente, uma narrativa anti-esquerda assente neste marco histórico e gerando capital eleitoral para as forças demagógicas que a propagam.

A memória histórica é uma arma. Uma arma defensiva de uma comunidade ou uma arma de arremesso de quem a pretende ludibriar. Por isso, não deve nunca ser desmerecida, algo que passa pelo combate ao discurso populista que a pretende menosprezar ou instrumentalizar — a mitificação do passado histórico é igualmente perigosa à sua desvalorização. Neste momento em que o debate sobre o nosso passado é tão inflamado, devemos procurar construir uma opinião fundamentada; escutar os especialistas em detrimento dos populistas e procurar a união em prejuízo da divisão. Conhecer e valorizar verdadeiramente o nosso passado é combater o projeto político de ódio, medo e polarização preconizado pela extrema-direita. O saber é poder.

Escrito por Diogo Mota Duarte.

Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora