Marxismo e a Social-Democracia: um debate revisionista
https://asdnaprojeto.medium.com/marxismo-e-a-social-democracia-um-debate-revisionista-4f4559380976
Desde o final do século XIX, existe um constante confronto entre marxistas revolucionários e sociais-democratas reformistas. Este conflito surgiu no que ficou conhecido como o "Debate Revisionista" e teve como principal personagem Eduard Bernstein, editor do jornal alemão Sozialdemokrat na década de 1880 e membro do Partido Social-Democrata da Alemanha ou SPD. Até à morte do seu compatriota e amigo Friedrich Engels em 1895, Bernstein era visto como um socialista marxista ortodoxo, à semelhança dos seus restantes camaradas na época, tendo participado na Conferência de Gotha em 1875 e redigido parte do Programa de Erfurt em 1891, juntamente com Karl Kaustky e Engels. Mas após a morte do seu amigo, Bernstein começou a ter dúvidas em relação ao caminho que a social-democracia alemã percorria, questionando os princípios e a doutrina marxista.

Esta cisão ideológica por parte de Bernstein levou a vários conflitos com as várias figuras da ala mais radical do socialismo alemão e, no Congresso de Estugarda de 1898, foram debatidos vários assuntos e problemas fulcrais trazidos à tona pelo social-democrata alemão, que culminou no repúdio da posição de Bernstein por parte dos dirigentes do SPD. No entanto, o Congresso de Estugarda não marca o fim deste debate.
No ano seguinte, Eduard Bernstein publica a sua mais famosa obra intitulada "As precondições do socialismo e as tarefas da social-democracia", onde reforça a sua posição ideológica, desta vez tendo como o seu principal opositor o austríaco Karl Kaustky.
Por volta deste período, Bernstein já havia chegado à conclusão de que, ao contrário do que Marx havia previsto, o capitalismo não havia colapsado sob os seus próprios interesses contraditórios, para que a classe revolucionária do proletariado pudesse tomar a posse dos meios de produção e estabelecer uma sociedade socialista. Bernstein argumentou também que, ao contrário do que Marx especulou, os meios de produção não se foram concentrando numa proporção cada vez menor de mãos e que a competição não destruiu grandes secções da burguesia, enquanto empurrava o proletariado para condições cada vez piores.
Por outro lado, Bernstein entendeu que os avanços do sistema democráticos nos países industrializados permitiram à classe trabalhadora ter um maior envolvimento no campo político e que, através do meio parlamentar, poderiam ser feitos grandes progressos no que dizia respeito à emancipação dos trabalhadores e à conquista dos seus direitos. A "vitória do socialismo" aconteceria, segundo Bernstein, através de um conjunto de vitórias alcançadas através da participação democrática da população e do uso dos meios legais e institucionais que os estados dispunham, focando-se nas reformas, por oposição à revolução.
A ideia de "socialismo" interpretada por Bernstein não correspondia ao comunismo aclamado pela ala mais radical do partido. Este argumenta que a economia da época era demasiado complexa para ser exclusivamente gerida por uma entidade estatal, advogando por uma regulação forte, por oposição a um controlo estatal total. Por tais motivos, embora defendesse uma economia socialista, Bernstein acreditava que a ideia de expropriação não faria sentido e que o setor privado continuaria a ter um papel importante.
No que dizia respeito ao estado social, Eduard Bernstein mostrava também uma opinião divergente, pois não via com bons olhos o indivíduo abdicar de quaisquer responsabilidades na manutenção do seu bem-estar, advogando por um espírito cooperativo, em prol do bem comum. Mas Bernstein não rejeitava a ideia de confronto de classes teorizada por Marx. No entanto, acreditava também que existiam interesses comuns que uniam todas as classes (embora atualmente essa noção seja interpretada como vaga ou abstrata).
Em 1896, num artigo designado "The Problems of Socialism", publicado no Die Neue Zeit, Bernstein expôs este seu pensamento, o que gerou oposição dentro do seu partido por parte de outros sociais-democratas considerados mais radicais (como Rosa Luxemburgo e Franz Mehring), que procuraram responder às suas ideias no famoso Congresso de Estugarda. Talvez mais marcante foi o facto de August Bebel e Karl Kaustky terem também discursado no Congresso, opondo-se à visão de Bernstein, o que o levou a responder na forma da sua obra "As precondições do socialismo e as tarefas da social-democracia".
Critica de Bernstein ao Marxismo
Em resposta às criticas que recebeu no Congresso de Estugarda, Bernstein cita a introdução de 1895 feita por Friedrich Engels na obra de Karl Marx, intitulada "A Luta de Classes em França", argumentando que o período da revolução já havia passado, e que a Social-Democracia, através de "métodos legais" (leia-se, utilizando os órgãos legislativos existentes), alcançaria resultados muito mais significativos. No entanto, Engels não tinha abandonado a ideia revolucionária, mas acreditava que uma crise política ocorreria primeiro que a queda do sistema capitalista e, por isso, o proletariado não se poderia antecipar em movimentos revolucionários, com receio de que as autoridades tomassem medidas preventivas. Simplificando esta teoria, a ideia passava por ver a Social-Democracia como uma forma de angariar o máximo de apoio popular, através do seu trabalho político, instituindo reformas que pudessem ajudar a aumentar a sua base de apoio e, mais tarde, participar no movimento revolucionário (daí a importância da defesa do sufrágio universal). Bernstein reconhecia que a explicação da teoria de Engels, que tinha fornecido algo unilateral, e nos primeiros capítulos da sua obra, tenta analisar a relação entre as suas ideias e a teoria marxista, dando particular ênfase à caracterização científica do socialismo.
Bernstein insistiu que a teoria marxista sobre o desenvolvimento do capitalismo enquadrava-se no ramo das "ciências puras", por oposição às "ciências aplicadas". Para ele, a atividade de um cientista era necessariamente aberta, ou seja, os princípios das ciências podem ser alterados, sem que a teoria seja rejeitada. Por essa razão, as conclusões de Marx não deixavam de ser menos verdadeiras no período de Bernstein do que na época em que foram formuladas, mas o principal ponto de Bernstein era que as verdades científicas não poderiam ser levadas em consideração como doutrinas permanentes. Assim, Bernstein não via a sua crítica como uma refutação do pensamento marxista, mas como uma elaboração mais aprofundada; afirmando que "qualquer desenvolvimento da teoria marxista teria que começar com a sua crítica", pois só a crítica pode validar a teoria marxista como realmente científica.
Tanto Marx como Engels, insistiram continuamente na teoria de que o capitalismo estava condenado ao fracasso e que a sua queda traria consigo a revolução socialista. Mas, de acordo com Bernstein, nenhum dos autores entendeu as implicações que as constantes modificações que fizeram impactaram a teoria original. Esta "teimosia" por parte de Marx e Engels prendia-se, segundo Bernstein, com a incapacidade por parte dos 2 em libertar-se das limitações da dialética hegeliana. As deduções a priori do pensamento hegeliano acabavam por contrariar as investigações e teorias científicas e era isto que formulava o elemento blanquista no pensamento marxista segundo Bernstein. Bernstein também argumenta que, caso Marx e Engels tivessem tido a capacidade de transcender as suas preposições, acabariam por chegar à mesma conclusão de que este chegou, no que diz respeito à evolução do capitalismo e da luta de classes.
Para Marx e Engels, era o carácter dialético que dava à sua teoria o teor científico, por oposição ao ideológico. Mas Bernstein operava com um conceito diferente de cientificidade. A sua conceção enquadra-se sobretudo no campo das ciências exatas, por oposição às sociais (como a História), mas a sua visão da ciência tinha um carácter distintamente positivista. Bernstein sabia que esta visão levantava questões importantes, nomeadamente a relação entre a teoria científica e a política, ou o facto de questionar se seria possível estabelecer objetivos políticos, como o socialismo, através de teorias científicas.
Movimento e objetivo final
Para Marx e Engels, a revolução era parte integrante da sociedade burguesa, pelo que o socialismo "era o resultado do conflito entre duas classes historicamente desenvolvidas" (Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico — F. Engels). Segundo a análise de Marx do capitalismo, baseada na propriedade privada como manutenção dos meios de produção, este só se poderia manter se estivesse constantemente a minar as suas próprias condições de existência. Se o problema de raiz do capitalismo era a concentração dos meios de produção na propriedade privada, este só poderia ser substituído por uma ordem económica e social que tivesse na sua base a socialização desses mesmos meios de produção. Em segundo lugar, sendo o proletariado constantemente explorado pela burguesia no sistema capitalista, o seu interesse comum de classe seria substituir a ordem económica e social, por uma alternativa onde não fosse explorado. Isto significaria abolir o sistema de propriedade privada, socializando os meios de produção. Marx considerava isto como o resultado necessário do desenvolvimento histórico do capitalismo.
Já Bernstein tinha uma visão diferente. Em relação ao socialismo, disse: "Eu admito que tenho muito pouco interesse àquilo que se designa por "objetivo final do socialismo". Este objetivo, o que quer que seja, não significa nada para mim, o movimento é tudo.". Tal afirmação causou contestação junto dos seus camaradas, o que levou Bernstein a explicar-se melhor, dizendo: "O movimento é tudo para mim, pois incorpora o objetivo final dentro de si". A principal razão para este pensamento era o facto de que, para Bernstein, o futuro não poderia ser previsto, como a sua crítica do marxismo demonstrava. No futuro, o sistema capitalista poderia colapsar, mas, da mesma forma, poderia ocorrer o oposto. Na sua obra "Precondições do Socialismo", Bernstein diz: "Não estou mais preocupado com o que acontecerá no futuro distante, do que com o presente e o futuro próximo". Em vez de esperar pelo inevitável colapso do capitalismo, a tática de Bernstein passava por entender as circunstâncias do presente, de modo a conseguir agir na melhor das formas, implementando os "princípios gerais da Social-Democracia" (os quais explica na segunda parte da sua obra, intitulada "As tarefas da Social-Democracia").
Para Marx e os seus seguidores, a atividade política e partidária não poderia ser um método de implementar um conjunto de princípios gerais, considerando que estas atividades apenas mascaravam o interesse de classes. Segundo Bernstein, a atividade política era governada por princípios intemporais que funcionavam como imperativos morais. Assim, e discordando dos seus colegas marxistas, acreditava que os meios e os fins não poderiam ser separados. Por isso, para Bernstein, uma reforma legislativa que implementasse um ou vários princípios da Social-Democracia era não só um meio, como também um fim já por si. Como referiu o alemão: "Pode existir mais socialismo numa legislação sobre indústrias do que a nacionalização de todo o setor industrial".
A visão política de Bernstein
Ao longo do artigo, entendemos as diferenças entre o marxismo e a visão de Bernstein, no que diz respeito aos objetivos do socialismo. Mas Bernstein nunca deixou de ser marxista, como pode parecer. O alemão entendia o papel que o conflito de classes tinha no mundo político das sociedades industriais modernas, mas também afirmou que havia interesses comuns a todas as classes no que dizia respeito a manter valores civilizacionais, que eram o objetivo primordial da atividade política. Em relação a esses valores, Bernstein disse: "A moralidade de uma sociedade civil desenvolvida não é de forma alguma idêntica com a moralidade da burguesia". Resumindo, para Bernstein, os valores morais civilizacionais transcendiam qualquer classe.
Contudo, Eduard entendia que o poder político poderia ser tomado e concentrado por uma classe particular, que detinha o seu monopólio (não esquecer que no final do século XIX, o governo conservador de Bismarck instaurou as Leis Antissocialistas, proibindo a livre associação e as manifestações de qualquer ideário socialista, numa tentativa de combater a crescente influência do SPD). Bernstein aceitava também que, perante a constante exclusão da classe trabalhadora do mundo político, esta não tinha outra alternativa senão olhar com bons olhos para as tendências revolucionárias da luta de classes.
Mas do mesmo modo, Bernstein também concluiu que, em todos os locais onde a democracia foi sendo progressivamente alargada para dar lugar aos representantes da classe trabalhadora, a qualidade de vida da mesma aumentou consideravelmente, sendo possível responder às demandas dos trabalhadores de uma forma legítima e democrática. Então, o primeiro objetivo do socialismo deveria ser o alcance da "democracia total", a qual Bernstein definia como "a ausência de um governo de classe".
Ao contrário do que o pensamento marxista ditava, Bernstein não via o estado como algo repressivo, mas sim como um instrumento com o potencial de impor os princípios morais de uma civilização avançada em todos os aspetos da vida pública. A ideia não diferenciava muito dos princípios liberais, a não ser o facto de ser mais "compreensiva e coesa" na sua conceção. Mas tal comparação não é de estranhar, pois segundo Bernstein, o "herdeiro legítimo" do liberalismo era o socialismo, acrescentando que "nenhum pensamento realmente liberal não pertence também aos elementos das ideias do socialismo".

As consequências e o debate revisionista
As críticas de Bernstein não passaram sem contestação, nomeadamente de Rosa Luxemburgo, que a viu, não como uma revisão da teoria marxista, mas como algo da "burguesia democrática progressista". No Congresso de Hanover de 1899, a questão do "Revisionismo" dominou a agenda política. Na liderança da oposição a Bernstein estava o seu amigo próximo, Karl Kaustky. August Bebel também se mostrou contra o ideário bernsteniano, dando um discurso de 6 horas, na tentativa de refutar o mesmo. Bernstein não teve a capacidade para responder, pois ainda se encontrava em exílio, mas em 1901 foi-lhe permitido regressar à Alemanha, retomando a sua vida política. Em 1902, foi eleito para o Reichstag por Breslau, lugar que manteve até 1906 e depois entre 1912 e 1918. Durante estes anos, a sua posição e as suas visões mantiveram-se praticamente iguais àquelas que dispôs no final do século XIX, conseguindo aumentar a sua influência dentro do partido, e no mundo sindical.

Em 1903, volta a ser o centro das atenções e do debate revisionista, quando afirma que o partido (SPD) deveria aceitar a posição de Praesidium do Reichstag, o que levantou questões internas sobre a relação entre a ordem política e social do partido.
Durante a 1ª Guerra Mundial, Bernstein posiciona-se como um ávido opositor ao conflito, juntando-se à fação mais radical do USPD, juntamente com Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Karl Kaustky, e outros. Contudo, após o fim do conflito, retoma à ala mais moderada. A década de 1920 foi marcada por um período mais conturbado para o SPD, o que levou à criação de um novo programa em 1921, o qual Bernstein esteve integralmente envolvido. Conhecido como o Programa de Gorlitz, grande parte da análise marxista presente no Programa de Erfurt foi abandonada. Contudo, o "triunfo do revisionismo" foi curto, pois em 1925, no Programa de Heidelberg, foram restaurados muitos dos princípios presentes no Programa de Erfurt.
Em 1928, Bernstein retirou-se da vida política, após ter tido uma importante contribuição no debate socialista, tendo vindo a falecer em 1932, sendo recordado como uma das mais importantes figuras, não só do SPD, como também da social-democracia e da história política da Alemanha contemporânea.

Escrito por Rodrigo Dias.
Referências
BERNSTEIN, Eduard, The Preconditions of Socialism, Cambridge, Cambridge University Press, 2012.
ENGELS, Friedrich, Socialism, Utopian and Scientific, Chicago, Charles H. Kerr & Company, 1908.
ENGELS, Friedrich, MARX, Karl, O manifesto do Partido Comunista, São Paulo, Boitempo Editorial, 1998.
ENGELS, Friedrich, MARX, Karl, A ideologia alemã, trad. Luís Claúdio de Castro e Costa, São Paulo, Martim Fontes, 2001.
FLETCHER, Roger, Bernstein to Brandt, A short history of German Social Democracy, Londres, Edward Arnold, 1989.
MARX, Karl, As lutas de classes em França, 1848–1850, São Paulo, Boitempo Editorial, 2015.
STEGER, Manfred B., The quest for evolucionary socialism, Eduard Bernstein and social democracy, Cambridge, Cambridge University Press, 2006.
TUDOR, J. M., TUDOR, H., Marxism & Social Democracy, The Revisionist Debate 1896–1898, Cambridge, Cambridge University Press, 1988.